Mais uma crônica para interpretação. É importante que o aluno perceba que trata-se de uma crônica, parte de um acontecimento comum, é narrado em 1ª pessoa...
O
suor e a lágrima
Fazia calor no Rio, quarenta
graus e qualquer coisa, quase quarenta e um. No dia seguinte, os jornais diriam
que fora o dia mais quente deste verão que inaugura o século e o milênio.
Cheguei ao Santos Dumont, o voo estava atrasado, decidi engraxar os sapatos.
Pelo menos aqui no Rio são raros esses engraxates, só existem nos aeroportos e
em poucos lugares avulsos.
Sentei-me naquela espécie de
cadeira canônica, de coro de abadia pobre, que também pode parecer o trono de
um rei desolado de um reino desolante.
Ofereceu-me o jornal que eu já
havia lido e começou seu ofício. Meio careca, o suor encharcou-lhe a testa e a
calva. Pegou aquele paninho que dá brilho final nos sapatos e com ele enxugou o
próprio suor, que era abundante.
Com o mesmo pano, executou com
maestria aqueles movimentos rápidos em torno da biqueira, mas a todo o instante
o usava para enxugar-se — caso contrário, o suor inundaria o meu cromo
italiano.
E foi assim que a testa e a calva
do valente filho do povo ficaram manchadas de graxa e o meu sapato adquiriu um
brilho de espelho, à custa do suor alheio. Nunca tive sapatos tão brilhantes,
tão dignamente suados.
Na hora de pagar, alegando não
ter nota menor, deixei-lhe um troco generoso. Ele me olhou espantado, retribuiu
a gorjeta me desejando em dobro tudo o que eu viesse a precisar no resto dos
meus dias.
Saí daquela cadeira com um baita
sentimento de culpa. Que diabo, meus sapatos não estavam tão sujos assim, por míseros
tostões fizera um filho do povo suar para ganhar seu pão. Olhei meus sapatos e
tive vergonha daquele brilho humano salgado como lágrimas.
Carlos Heitor Cony
Atividades
Atividades
1.Esse texto pertence ao gênero: ( )
conto ( ) crônica
Justifique.
2. O narrador parte de um acontecimento comum, que o faz refletir. Assinale a opção que
expressa o acontecimento que o leva a essa reflexão.
( ) O
suor do engraxate do aeroporto Santos Dumont, misturando-se à graxa.
( ) O forte calor que fazia no Rio de Janeiro
levava as pessoas a suar.
( ) O atraso da aeronave onde o narrador viajaria.
( ) O
uso, pelo narrador, de um sapato caro, que foi reconhecido como tal pelo
engraxate.
3.Por que o narrador teve vergonha do brilho dos seus
sapatos?
4.No título do texto, os termos — suor e lágrima —podem ser
interpretados, respectivamente, como:
( ) o fluido destilado pelos poros da pele; a
secreção produzida pelas glândulas lacrimais.
( ) a tristeza; o trabalho duro.
( ) o trabalho forçado; o desejo de vingança.
( ) a exploração do outro; a culpa, o remorso.
5. A descrição, feita pelo narrador, da cadeira em que se
sentou para engraxar o sapato sugere que o móvel:
( ) era
velho e estragado; seu estado podia indicar a pobreza do engraxate.
( ) era
muito antigo, uma relíquia de antiguidade.
( ) tinha várias funções. Atendia a muitas
necessidades.
( ) era velho, já meio estragado, no entanto
muito confortável.
6. a)Qual a diferença entre desolado e desolante (2º parágrafo)?
b) Ao falar de suor
e pão, o texto lembra uma frase famosa retirada da bíblia. Qual?
7. O narrador chama o engraxate de “filho do povo”, o que ele
quis dizer com essa expressão?
8. O fato dos sapatos serem de cromo italiano exerce alguma
importância na crônica?
9. Indique se as afirmativas abaixo são verdadeiras (V) ou falsas (F).
( ) Com o
troco generoso deixado para o engraxate, o narrador quis disfarçar um
preconceito que o dominava naquele momento.
( ) A
culpa que o narrador experimenta é tão grande que extrapola aquele incidente
pequeno da limpeza do sapato.
( ) O
espanto do engraxate ao receber a gorjeta mostra que os fregueses habituais não
eram tão generosos.
( ) O
dinheiro estava para o sentimento de culpa do cronista assim como os votos de
felicidade estavam para o sentimento de gratidão que o engraxate experimentava.
( ) A
única coisa que chateava o narrador era o calor escaldante.
10. Justifique o título do texto.
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